O que vou relatar aqui, aconteceu há mais de 30 anos.
Tenho 77 anos.
Sou uma discreta travesti, sempre foi, mesmo jovem. Não faço questão, mas “passo” por mulher. Sou de estatura feminina. Tinha farta cabeleira e nunca usei de procedimentos para mudar de corpo ou rosto. Estou citando esses detalhes, não para me diferenciar, mas porque é importante para o relato.
Eu morava no Rio de Janeiro e minha mãe me convidou para o aniversário de 15 anos de uma sobrinha na cidade de Curvelo, no interior de Minas Gerais. Para agradar minha mãe, aceitei. O pai da debutante era meu irmão mais velho. Com certeza minha mãe tinha me convidado sem consultá-lo .
Ficamos num hotel fuleiro no centro da cidadezinha.
Vou resumir:
Meu irmão médico conhecido na região. A verdade é que fui totalmente ignorada por ele, sua esposa, seus filhos. Era como se eu não estivesse ali. Fiquei muda durante todo o tempo ( umas três horas). Não fui apresentada a ninguém. Não me senti inferior, pois desde cedo compreendi que a melhor maneira em qualquer momento é assumir a situação. Eu era quem era e gostava de ser quem eu era. E não era aquele preconceito que me faria mudar. Aguentei muda, acho que nem comi nada. Era surreal. Era um pessoal nada interessante. E não falar com eles era até um alívio. Eu pensava: quem perde são eles. Não era pretensão, era realidade.
Não havia ainda o termo homofobia. Mas a ignorância sempre existiu.
Acho que meu irmão continua igual. Nas raras vezes que nos encontramos a gente se fala o trivial simples. Ele me chama de irmão no zap quando manda mensagens de bom dia . E eu respondo no feminino.
Na volta ao hotel minha mãe não teve coragem de comentar nada.
Deve ter ficado triste mas não teve força de agir diferente.
Eu , como disse não me senti inferior, aliás ao contrário.
Mas aquele dia ficou marcado na minha memória.
Talvez hoje eu teria agido diferente. Feito a revelação. Feito indagações.
Mas não quis atrapalhar a “festa”
Imagino que meu tenha passado todo o tempo imaginando que fossem “descobrir “. Ou talvez ele já soubesse da minha personalidade.
Sei que ainda têm pessoas gays que passam por estas situações e até piores.
A gente não esquece. Fica marcado como ferro em brasa . Lembranças ruins.
Paulette